terça-feira, 6 de março de 2007

Michel Foucault e o estudo das religiões

Introdução

Renomado filósofo e um dos intelectuais que mais exerceu influência sobre o mundo acadêmico contemporâneo, Michel Foucault nasceu em outubro de 1926 e faleceu em junho de 1984. Embora sua obra possa ser definida como tendo um caráter eminentemente filosófico, suas idéias tiveram forte repercussão sobre as ciências sociais e humanas de uma forma geral. A historiografia viria a ser a área pela qual Michel Foucault mais transitaria em sua reflexões filosóficas, fato que pode ser verificado no próprio título de seus principais trabalhos: Doença mental e psicologia (1954), História da loucura na idade clássica (1961), O nascimento da clínica (1963), As palavras e as coisas (1966), Arqueologia do saber (1969), Vigiar e punir (1975) e História da sexualidade, em três volumes, A vontade de saber (1976), O uso dos prazeres (1984) e O cuidado de si (1984).
Hoje parece haver um certo consenso entre os estudiosos do pensamento de Michel Foucault em considerar que a sua obra se concentra na análise das práticas. Embora a análise das práticas seja uma continuidade nas reflexões do autor, sua obra seria composta de três fases: 1) arqueologia do saber, voltada para a análise das práticas discursivas, buscando compreender como se relacionam verdade e saber; 2) genealogia do poder, fase em que o autor procura observar como se constroem as práticas do poder a partir das suas relações com o saber e o corpo; 3) práticas de subjetivação, momento final de sua obra em que procura analisar o que as pessoas fazem de si mesmas. Usando este quadro como referência, pode-se afirmar que os três textos que abaixo serão analisados pertencem à primeira fase de seu pensamento, portanto todos voltados para a análise das práticas discursivas.
Vou fazer uma apresentação/análise de cada um dos três textos, uma vez que há uma certa unidade temática entre eles, para somente no fim estabelecer aproximações para com o objeto empírico que pesquiso, o discurso sobre o Diabo da Igreja Universal do Reino de Deus (1977-2002).

1) As palavras e as coisas

FOUCAULT, M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1999 (1966). p. 475-536.

O trecho em destaque é o décimo e último capítulo da obra supra citada e tem como título “As ciências humanas”. O capítulo possui seis subdivisões: 1) O triedro dos saberes; 2) A forma das ciências humanas; 3) Os três modelos; 4) A história; 5) Psicanálise, etnologia e 6) Uma conclusão, sem título dado pelo autor.
Neste texto Michel Foucault analisa o aparecimento das ciências humanas no âmbito da epistémê moderna que se formou no fim do século XVIII. O surgimento desta epistémê está ligado à mudança de foco no seio dos saberes modernos, que deixam de tomar a linguagem como elemento de análise para se ocupar dos “fatos”, da “realidade objetiva”. Este espaço deixado pela linguagem viria a ser preenchido por um novo objeto das ciências, o ser humano. Acontece que o ser humano, como objeto recente e construído a partir de uma situação epistemológica muito específica, tende a desaparecer, pelo menos na forma de ver do autor.
A leitura de Michel Foucault é a de que estas transformações epistemológicas já estariam em andamento em seu tempo e, em conseqüência, o ser humano deveria desaparecer rapidamente. É provável que tivesse em mente mudanças como as que estavam em andamento nas pesquisas lingüísticas, historiográficas e antropológicas sob influência do estruturalismo.

2) O que é um autor?

FOUCAULT, M. “O que é um autor?” (1969). In: MOTTA, M. B. (Org.). Michel Foucault: estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. (Coleção Ditos e Escritos III). p. 264-298.

“O que é um autor?” é o texto originado de uma conferência proferida por Michel Foucault, em 1969, no Collège de France tendo como destinatários os membros da Sociedade Francesa de Filosofia. A mesma conferência foi pronunciada na Universidade de Búfalo, Nova Iorque, em 1970, com algumas variantes.
O texto da conferência é precedido de uma apresentação sintética das suas quatro subdivisões (p. 264-265), que não estão nomeadas/tituladas por Michel Foucault, apenas indicadas por asteriscos.
No primeiro item (p. 265-271) Michel Foucault faz uma apresentação do problema que pretende tratar: a importância da autoria de uma determinada fala/obra. Segundo o filósofo francês, a crítica literária tentou decretar a morte do autor, mas noções que deveriam substituí-lo são demasiadamente problemáticas. A crítica literária procurou se ocupar de uma obra sem precisar fazer referência ao seu autor empírico externo, todavia, esta alternativa esbarra nas dificuldades de se estabelecer critérios para delimitar os seus limites. Outra noção que deveria dispensar a referência ao autor é a de escrita, mas ela acaba por se transformar no registro de uma ausência, trazendo no seu seio evidências de uma transcendentalidade.
No segundo item (p. 271-274) Michel Foucault analisa os problemas suscitados pelo nome do autor. O nome do autor não é simplesmente um nome próprio como os demais, pois possui três características importantes e distintivas: 1) Assegura uma função classificatória (agrupar, delimitar, excluir textos); 2) Permite caracterizar o modo de ser de um determinado discurso; 3) Estabelece o status de um dado discurso.
No terceiro item (p. 274-280) o texto atinge o seu auge e Michel Foucault passa a fazer uma análise da função do “autor”: A função do autor possui quatro características: 1) Exerce função de apropriação; 2) Não é exercida de maneira universal e constante em todos os discursos; 3) Resulta de uma operação complexa que constrói um certo ser de razão que se chama autor; 4) Comporta simultaneamente vários egos e várias posições-sujeitos que classes diferentes de indivíduos possam vir a ocupar. No final do item há um parágrafo que sintetiza bem estas quatro funções (p. 279).
No quarto item (p. 280-286) o filósofo francês faz uma análise do que denomina de posição de transdiscursividade. A idéia é a de que é possível ser autor de algo mais amplo que um texto ou um livro. Há autores que são verdadeiros fundadores de discursividade, pois estabelecem possibilidades infinitas de discursos, ao construírem teorias, tradições de pensamento ou disciplinas.
Na conclusão de sua conferência (p. 286-288) Michel Foucault lamenta ter concentrado suas análises em proposições negativas e passa a conjecturar em que consistiria um trabalho mais construtivo/positivo. Uma análise construtiva procuraria responder a algumas perguntas: 1) Em que condições um sujeito aparece em um determinado discurso? 2) Que lugar um sujeito ocupa em um tipo de discurso? 3) Que funções o discurso exerce? 4) Que regras regem o discurso?
Após a apresentação das conclusões do autor, é aberto um debate (p. 289-298) com alguns intelectuais, dentre eles pessoas do calibre de L. Goldmann e J. Lacan.

3) A arqueologia do saber

FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000 (1969). p. 3-34.

O trecho em destaque é composto pela introdução e o primeiro capítulo, “As unidades do discurso”, do livro acima referido, onde não se pode identificar nenhuma subdivisão.
Na introdução (p. 3-20) Michel Foucault faz uma análise das transformações epistemológicas ocorridas no campo historiográfico em seu tempo. O autor constata que a historiografia estava assumindo um caráter arqueológico, ou seja estava se voltando para uma descrição intrínseca do documento. Este deslocamento no campo historiográfico promoveu as seguintes alterações no modo de fazer história: 1) Multiplicação de rupturas na história das idéias e a exposição de períodos longos na história propriamente dita; 2) Valorização da noção de descontinuidade; 3) Ofuscamento da possibilidade de uma história global/geral; 4) Difusão de uma série de problemas de caráter metodológico.
As mutações no campo historiográfico demonstram que as concepções filosóficas que sustentavam um certo modo de fazer história estava em crise. Michel Foucault está se referindo à filosofia do sujeito que dá suporte à visão de que a história é um devir conduzido por uma razão transcendental. A sua própria obra teria sido uma tentativa de produzir historiografia com uma concepção descentrada de sujeito, calcada na busca e análise das descontinuidades.
No início do primeiro capítulo (p. 23-34) Michel Foucault diz qual será o seu objeto de análise, os problemas teóricos, e qual será o universo empírico a partir do qual tecerá suas considerações, a história das idéias/pensamento/ciências/conhecimento.
O texto começa com proposições negativas, procedimentos que devem ser descartados pelo historiador: 1) Libertar-se de um jogo de noções que servem de variações ao tema da continuidade: tradição, influência, desenvolvimento, evolução, mentalidade e espírito; 2) Inquietar-se diante de certos recortes/agrupamentos que se tornaram familiares: política, literatura, livro e obra; 3) Renunciar a dois temas ligados entre si e que se opõem: um que nega ser possível assinalar a irrupção de uma acontecimento verdadeiro no âmbito do discurso e outro que afirma que todo discurso manifesto repousa sobre um já dito.
Tendo analisado o que vai ser descartado, Michel Foucault afirma que o historiador deve se ocupar com a análise do campo discursivo. Para a análise do campo discursivo, o autor deixa quatro recomendações importantes: 1) Suprimir as unidades inteiramente aceitas para dar lugar ao enunciado e sua singularidade como acontecimento; 2) Tornar-se livre para descrever jogos de relações entre enunciados diferentes e entre estes e práticas; 3) Descrever unidades a partir de um conjunto de decisões controladas.
4) Repercussão sobre a pesquisa empírica
As ciências sociais têm procurado estudar o Diabo e seus demônios a partir de uma perspectiva que se coloca para além de sua realidade objetiva. As ciências sociais não estão preocupadas com a existência objetiva do Diabo e seus demônios, mas em compreender como e porque as pessoas acreditam nestes seres e de que forma esta crença altera suas vidas. Como alternativa à concepção teológica, que é objetivante, as ciências sociais têm procurado trabalhar com os conceitos de representação e imaginário, que permitiriam acesso ao valor que as pessoas atribuem ao objeto Diabo sem ter que entrar no mérito de sua existência ou não. Mas estes conceitos resolvem o problema de colocar o estudioso para além da veracidade objetiva do Diabo e seus demônios, mas são problemáticos porque criam um outro dilema. A idéia de representação ou imaginário induz à concepção de que deve haver uma realidade, criada socialmente, que é representada, estética ou imaginativamente, por algum sujeito. A solução de se colocar para além da realidade objetiva do Diabo e seus demônios desemboca no pólo de fundamentar a existência dos seres infernais na mente de sujeitos historicamente existentes.
Penso que a concepção de práticas discursivas de Michel Foucault oferece uma saída satisfatória para o dilema. O Diabo e seus demônios não existem como realidade objetiva nem subjetiva, mas são construídos historicamente a partir de enunciados e visibilidades. Os discursos pronunciados pelo Cristianismo ao longo dos séculos e pela I.U.R.D. na atualidade é que constituem o Diabo e seus demônios como realidade objetivada. Mais que isso, o saber demonológico dos livros e dos líderes da I.U.R.D. não só constroem o Diabo e seus demônios, como também constroem a identidade e a história de vida de sujeitos endemoninhados e desdemoninhados. As pessoas que freqüentam a I.U.R.D. são constituídas como sujeitos endemoninhados e desdemoninhados a partir dos discursos diabólicos da liderança desta igreja. Toda a história de vida das pessoas é narrada novamente a partir da experiência de estar possuída e despossuída pelo Diabo e sua corja. As vidas das pessoas passam a ter um antes de encontrar-se com Jesus na I.U.R.D., a vida cheia de agruras e demônios, e um depois, a vida abundante e desdemonizada.